Shanghai Y-10: A história do “Boeing chinês”
Construído a partir de um 707 acidentado no final dos anos 1970, o Y-10 foi a primeira tentativa da China de construir seu próprio avião comercial


Hoje a China é uma potência global, seja militar ou comercial. Há quase 50 anos, o país ainda era considerado pelo Ocidente como atrasado. Antes de se tornar o gigante atual – não por suas dimensões – o país asiático teve que remar muito para progredir e se aproximar dos principais players do mundo.
Um desses movimentos, no sentido de crescer e deixar o retardo econômico para trás, foi o desenvolvimento local de um avião comercial a jato. No início dos anos 1960, a China dependia exclusivamente de ajuda da URSS e tinha no Xian H6 (versão do bombardeiro Tupolev Tu-16) seu único avião a jato feito no país.
Os soviéticos Ilyushin IL-62 eram usados nas rotas nacionais e internacionais, mas não havia uma alternativa mais moderna e de maior alcance para os chineses. Então, a Administração de Aviação Civil da China (CAAC, sigla em inglês), o equivalente a ANAC no Brasil, se dedicou ao projeto de um avião adequado para o futuro do país.
Foi assim, no começo dos anos 1970, que a China deu os primeiros passos na direção de um jato comercial próprio, independente do Ocidente ou da URSS. Entretanto, essa história, que originou o famoso Shanghai Y-10, não começou dentro das fronteiras do país.
Uma ajuda paquistanesa
Como já dito anteriormente, a China buscava o desenvolvimento de uma aeronave própria, mas isso não poderia surgir do zero, sem uma referência.

Segundo o relato histórico do projeto do Y-10, um Boeing 707 (ou 720) de procedência do Paquistão teria caído ou sido derrubado intencionalmente em Hetian, província de Xinjiang, uma cidade-oásis no sudoeste do país. Não há registro dessa queda de forma oficial.
Dez anos antes de a China pensar em algo além do russo IL-62 que, aliás, surgiu nessa época, o Paquistão iniciava sua jornada por rotas longas através da Pakistan International Airlines (PIA). Esta empresa havia alugado em 1960 um Boeing 707 da Pan Am para rivalizar com a Air Índia.
Logo depois, encomendou os primeiros Boeing 720, uma variante curta do 707. A PIA chegou a ter nove exemplares desta aeronave, operados até 1986. Destes, dois foram vendidos, um caiu e os demais estão armazenados até hoje. É este que caiu que chama atenção para esta história.
Em 1965, o voo 705 da PIA caiu no Cairo, Egito, matando 145 pessoas, com apenas seis sobreviventes. Essa foi a única perda do 720 na empresa. Na mesma época, a companhia paquistanesa operava vários 707, totalizando 13 ao longo do tempo. Destes, um caiu no ano de 1979, na Nigéria, matando 156 pessoas.
A segunda queda de 707 da PIA ocorreu em 15 de dezembro de 1971, em Urümqi, província chinesa de Sinkiang. Apenas estes três acidentes estão oficialmente relacionados com a paquistanesa.

Ou seja, oficialmente nenhum 707 se acidentou na China até 1970. Esta é a data declarada da queda do referido Boeing em território chinês, mas todos os seis acidentes registrados deste ano, estão relacionados diretamente com a TWA. O que se sabe é que este Boeing caído em Hetian serviu de base para os estudos da CAAC.
Estranhamente, como já mencionado, outro 707 – este sim, da PIA – cairia no ano seguinte na China, mas como um acidente aéreo registrado. A partir do Boeing caído, os engenheiros chineses iniciaram o desenvolvimento de seu próprio jato, que seria mais tarde o Y-10.
Engenharia reversa
Utilizando-se de engenharia reversa, os chineses estudaram o Boeing “adquirido” e aplicaram a experiência obtida em um projeto de jato comercial, quadrimotor, que substituiria os russos IL-62, a princípio. Com codinome 708, o programa foi iniciado em Xangai pela fabricante estatal Shanghai Aircraft Factory (SAC), a atual COMAC, em agosto de 1970.
Para o projeto da nova aeronave, que seria conhecida como Shanghai Y-10, o governo de Pequim direcionou 537,7 milhões de yuans na época, hoje em torno de R$ 293,8 milhões numa conversão direta e sem desvalorização.
Obviamente a China queria mostrar seu progresso ao mundo e não tardou para que a notícia do primeiro jato comercial nacional chegasse ao Ocidente, onde foi recebida de forma positiva. No entanto, o projeto 708 sofreria tanto por dificuldades técnicas quanto políticas.

A China estava em plena revolução cultural e o líder do programa era um membro da chamada “Gangue dos Quatro”, grupo de líderes do Partido Comunista Chinês que estavam no comando das mudanças políticas e culturais no país. Wang Hongwen era o homem forte por trás do projeto.
Após o desmonte do Boeing, os engenheiros chineses replicaram suas características técnicas e descobriram que o novo avião não poderia voar. O mesmo ocorreu em relação à tentativa de reconstrução do avião original.
Durante os primeiros anos de desenvolvimento do Shanghai Y-10, os EUA procuraram se aproximar da China. Em 6 de julho de 1972, o jornal The New York Times revelava que o presidente Richard Nixon viajaria até Pequim e que, na mala, levaria a proposta de vender 10 unidades do 707 aos chineses.
Tratava-se de uma licença de exportação de 10 jatos entre a Boeing Company e o governo da China, no valor de US$ 150 milhões. Na época, a informação dizia que seriam unidades com reforços estruturais e conversíveis em cargueiro, mas seu objetivo primário seria o transporte de passageiros.
A venda ocorreu e se tornou um marco na história da Boeing, reproduzida ainda hoje no próprio site do fabricante. Mesmo com a venda dos aviões americanos e, com possibilidade de extensão para modelos 727 e 737, o projeto do Y-10 seguiu em frente. Pequim igualmente negociava mais IL-62 e também tinha planos para o inglês Hawker-Siddeley Trident.

Entretanto, a independência ainda era um objetivo. Com o fim da Revolução Cultural em 1976, o Y-10 seguiu seu curso, mas agora com o novo governo se distanciando mais do programa. O temor de associação com a Gangue dos Quatro fez com que membros do partido evitassem exposição direta com o avião.
Além disso, já havia o debate sobre a viabilidade do projeto, pois, o 707 tinha 30 anos e o Y-10 surgiria como um jato ultrapassado em meados dos anos 80. A CAAC, diante disso e da abertura comercial do país, vislumbrou um futuro sem esta aeronave e cancelou os pedidos, mas o projeto continuou.
Shanghai Y-10
No final dos anos 1970, o projeto 708 se converteu no Shanghai Y-10, também conhecido como Yun-10. Era um jato comercial de design muito semelhante ao Boeing 707, mas com tamanho pouco maior que o 720. Quase uma cópia perfeita do avião americano, o chinês tinha poucas diferenças.

A maior era a empenagem vertical, cujo topo era curvado suavemente, enquanto os 707/720 da Boeing tinham uma antena horizontal, deixando o topo retilíneo. As semelhanças eram maiores com o menor dos dois jatos americanos, mas o nariz suavizado em modelos de escala indicava uma tendência de mudanças no futuro.
O Shanghai Y-10 também tinha interior diferente da Boeing e o cockpit exigia cinco tripulantes apenas para faze-lo voar, sendo piloto, copiloto, operador de rádio, engenheiro de voo e navegador, o que demonstrava obviamente o atraso no desenvolvimento aeronáutico chinês.
Com 42,93 m de comprimento, 42,24 m de envergadura de asa, 13,42 m de altura e área alar de 244,5 m2, o Shanghai Y-10 podia levar até 178 passageiros com peso máximo de decolagem de 110.227 kg.

Dada a demora no desenvolvimento do avião, o projeto de um turbofan próprio fez com que a agora SAC decidisse por utilizar os conhecidos motores Pratt & Whitney JT3D com 19.000 libras de empuxo cada um, totalizando 76.000 libras. Estes haviam sido comprados como sobressalentes dos 707 adquiridos em 1972.
O primeiro voo se deu em 26 de setembro de 1980 e foi considerado um sucesso. O Shanghai Y-10, no entanto, era lento, tendo velocidade máxima de 639 km/h (o 707 original passava dos 900 km/h). Seu teto de serviço era de 12.000 m e o alcance atingia bons 8.300 km, suficiente para cobrir todo o território chinês em ida e volta.

Aliás, foi isso o que ele fez em uma série de voos de certificação. Em 4 de outubro de 1983, o Y-10 fez seu voo mais longo, indo de Pequim até Urümqi, mesmo local onde caíra um 707 da PIA em 1971. Ele percorreu 3.660 km com peso máximo de decolagem e 15 toneladas de carga. Voaria ainda para o sul da China e até Lhasa, no Tibet.
A Shanghai Aircraft Company chegou a fazer um filme – intencionalmente direcionado ao Ocidente – mostrando os avanços do Y-10 e os referidos voos feitos dentro do país. Chama atenção a menção (com legenda em inglês aos 5m40s) de que o avião não é uma cópia do Boeing 707…

Só existia um único avião, visto que a SAC havia construído um exemplar para ensaios estáticos e outro para testes de fadiga. Após diversos voos nacionais, o Y-10 teve seu programa finalmente cancelado em 1983, devido às questões de custo e mercado.
A China estava em processo de abertura comercial e isso significaria a entrada de outros aviões estrangeiros, mais modernos e seguros que o Y-10. O projeto ainda contemplou uma versão AWACS (radar), de aspecto semelhante ao Boeing E-3 Sentry dos EUA.
Mesmo com o fim do Shanghai Y-10, a China não desistiu de nacionalizar um jato comercial. Dois anos depois, o McDonnell Douglas MD-80 (ex-DC-9) teve uma licença de produção expedida e as atenções se concentraram nele.
Hoje, além do Comac ARJ21 – supostamente originado do MD-80, apesar da negativa chinesa – o país prepara o terreno para o C919 e CR929, este último em parceria com a Rússia. Já o Y-10, está estacionado atualmente no Museu Aeroespacial de Dachang, em Xangai, tendo sido restaurado em 2012.

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