XB-70 Valkyrie, o avião que veio do futuro

Maior aeronave já criada pelo homem a voar a três vezes a velocidade do som, o XB-70 nasceu como bombardeiro mas foi “abatido ainda em solo” pelos mísseis balísticos nucleares
O XB-70 voa ao lado do bombardeiro B-58 Huslter: ao contrário do Valkyrie, o modelo menor entrou em serviço, mas voava a 'apenas' Mach 2 (NASA)
O XB-70 voa ao lado do bombardeiro B-58 Huslter: ao contrário do Valkyrie, o modelo menor entrou em serviço, mas voava a ‘apenas’ Mach 2 (NASA)

Pouca gente sabe da sua existência, mas o North American XB-70 Valkyrie foi um dos mais espetaculares aviões já criados pelo homem. Um projeto que acumulou tantos infortúnios e marcos que é difícil explicar em poucas palavras a sua efêmera carreira. Com seu design futurista e tecnologia pioneira, o jato de seis motores é até hoje a maior aeronave a ter voado acima de Mach 3, ou seja, três vezes a velocidade do som.

Ironia do destino, o bombardeiro, desenhado para ser a mais formidável plataforma nuclear dos Estados Unidos foi “derrubado” antes mesmo de voar graças ao advento dos mísseis anti-aéreos soviéticos que abateram o avião espião U-2 de Gary Powers em 1960.

O projeto surgiu em 1955 com o objetivo de substituir os bombardeiros B-52 por um aparelho capaz de voar a Mach 3 e a uma altitude de 23 mil metros, mais do que o dobro dos jatos comerciais atuais. Até então, apostava-se que a velocidade elevada e a distância do solo eram capazes de oferecer segurança para um avião, mas os mísseis terra-ar evoluíram mais rápido e passaram a ser uma ameaça real.

Ao mesmo tempo, os Estados Unidos aprimoravam o conceito de míssil balístico nuclear. Lançados de terra ou do mar, eles funcionam como foguetes na decolagem, mas percorrem uma trajetória circular reentrando na atmosfera em alta velocidade e despejando dezenas de ogivas atômicas – tudo isso sem que nenhum tripulante esteja a bordo.

Esse poderio encerrou a carreira dos bombardeiros de grande altitude e o programa XB-70 foi cancelado em março de 1961 pelo presidente John Kennedy sem que nenhum protótipo tivesse voado. Mas a história do Valkyrie – da mitologia nórdica, “as que escolhem os que viverão ou morrerão na batalha” – ainda teria outros capítulos, um deles trágico.

A proposta final do XB-70 era praticamente idêntica ao avião construído (NA)
A proposta final do XB-70 era praticamente idêntica ao avião construído (NA)

Desenho incomum

O XB-70 surgiu numa época em que os primeiros jatos eram aviões com aerodinâmica simplória, muitos deles ainda pensados como aeronaves movidas a hélices. Mas, para voar numa velocidade tão alta, o desafio era enorme e somente uma configuração inédita poderia superar essas dificuldades.

Uma das grandes barreiras do voo hipersônico é lidar com as ondas de choque que se formam em tamanha velocidade. A solução imaginada pelos engenheiros da fabricante North American (hoje parte da Boeing) foi deslocar a cabine de comando para o alto, liberando o fluxo de ar por entradas do motores abaixo da fuselagem.

As enormes asas em delta do XB-70: alvo fácil para os mísseis russos (USAF)
As enormes asas em delta do XB-70: alvo fácil para os mísseis russos (USAF)

O chanfro bem acima dessas entradas causava uma turbulência na onda de choque que acabava sendo ‘retardada’ e gerando sustentação para na parte inferior das imensas asas em formato de delta. Para ‘segurar’ essa onda, o XB-70 possuía um mecanismo genial e raro na aviação: as pontas das asas dobravam 65 graus para baixo, aumentando também a estabilidade direcional a altas velocidades.

Para completar o estilo incomum, ele possuía dois estabilizadores horizontais e ‘canards’, os estabilizadores horizontais posicionados à frente das asas, logo atrás do cockpit.

Os seis motores GE lado a lado: 80 toneladas de empuxo (NASA)
Os seis motores GE lado a lado: 80 toneladas de empuxo (NASA)

Hexamotor

Mas não bastava apenas um avião de forma nunca vista. Na essência, o XB-70 também precisava inovar e isso pode ser percebido na adoção de nada menos que seis motores turbojatos General Electric J93 com pós-combustão. Juntos eles proporcionavam mais de 80 toneladas de empuxo. Enfileirados na cauda, as seis saídas pareciam uma visão de algum filme de ficção científica.

Pesando quase 250 toneladas, o bombardeiro exigiu um sistema de pouso robusto para conseguir pará-lo. Só o conjunto de trens de pouso (cujo mecanismo de recolhimento era um show à parte) pesava 6 toneladas (duas delas só de pneus, rodas e freios). E ainda era preciso um conjunto de para-quedas para ajudar a segurar o gigante supersônico, algo que nem sempre funcionou (veja vídeo abaixo).

Ao contrário do SR-71 Blackbird, o avião espião que também voava a Mach 3, o XB-70 só possuía 9% da sua estrutura em titânio, metal extremamente resistente a altas temperaturas, mas muito caro e raro. Em vez disso, a North American desenvolveu um material que unia aço inoxidável numa estrutura em colmeia e que em vez de ser soldado era unido por meio do processo de brasagem – técnica que acabou sendo usada mais tarde em toda a indústria aeronáutica.

Mudança de papel

Dois protótipos estavam sendo construídos nos hangares da North American na Califórnia quando o então presidente Kennedy cancelou o programa. Mas o que parecia ser o fim prematuro do Valkyrie transformou-se numa nova e nobre missão.

No início dos anos 60, as fabricantes aeronáuticas vislumbravam um futuro supersônico para  a aviação comercial afinal em poucos anos os aviões de passageiros haviam migrado dos motores a pistão para os jatos. Era natural, portanto, que na próxima década estivessem cruzando os céus acima de Mach 2. Mas a pesquisa para esse tipo de voo havia apenas começado e os americanos tinham no programa SST (American Supersonic Transport) o seu desafiante ao europeu Concorde e ao soviético TU-144.

Foi a NASA que ‘salvou’ o XB-70 do esquecimento. A agência espacial já estudava o assunto há tempos e viu no ex-futuro bombardeiro uma oportunidade de testar seus conceitos na prática.

Graças às suas dimensões generosas (56,7 m de comprimento e 32 metros de envergadura), ele era praticamente do tamanho dos futuros jatos comerciais supersônicos (de fato, o Concorde era apenas um pouco mais longo, porém, mais estreito e leve).

Estudos para um avião comercial supersônico salvaram o XB-70 da aposentadora precoce (NASA)
Estudos para um avião comercial supersônico salvaram o XB-70 da aposentadora precoce (NASA)

O primeiro protótipo XB-70A 62-001

Mesmo com o aval da NASA, o projeto do XB-70 acabou passando por momentos muito difíceis. A engenhosidade da sua concepção não foi suficiente para solucionar vários problemas na sua construção e nos sistemas que utilizava. O primeiro protótipo, de número 62-001, ficou pronto em meados de 1963, mas um vazamento de combustível persistia sem solução.

Apenas em 11 de maio de 1964 o XB-70 saiu do hangar da North American, mostrando ao mundo suas formas inéditas. O primeiro voo acabou ocorrendo em 21 de setembro daquele ano, decolando das instalações de Palmdale, na California, e voando em direção a base aérea de Edwards, onde assumiria sua tarefa de aeronave de testes mais avançada da história.

Logo na terceira tentativa, o XB-70 superou a barreira do som, atingindo Mach 1.1, e logo o aparelho batia recordes de voo supersônico contínuo ao chegar a voar por 74 minutos acima da velocidade do som, 50 deles em Mach 2. Quase um ano depois do primeiro voo, o XB-70, enfim, atingiu Mach 3, a velocidade projetada para o avião.

As primeiras experiências em voo, no entanto, não passaram incólumes. Atingir Mach 1 já era um objetivo na primeira decolagem, porém, o trem de pouso não recolheu por completo e ao pousar um princípio de incêndio destruiu os pneus. Em outro voo, partes da entrada de ar se partiram e inutilizaram os motores, mas o Valkyrie pousou milagrosamente em segurança. E no voo em que atingiu Mach 3 cerca de 6 metros do bordo de ataque foi arrancado no ar. Curiosamente, ao atingir velocidades tão altas, a pintura branca se desprendeu da fuselagem nas primeiras tentativas, dando um ar peculiar ao avião.

Com receios de novos incidentes, a equipe do projeto decidiu limitar a velocidade máxima do primeiro protótipo a Mach 2.5.

O Valkyrie bateu recordes de voo prolongado a Mach 3 (três vezes a velocidade do som)
O Valkyrie bateu recordes de voo prolongado a Mach 3, três vezes a velocidade do som

O segundo protótipo 62-20207

Enquanto o primeiro avião era testado, a NASA avaliou o XB-70 em um túnel de vento e descobriu que algumas mudanças na estrutura poderiam melhorar significativamente o desempenho da aeronave como o aumento de 5 graus no diedro das asas – de forma simples, as apontando mais para cima.

O segundo protótipo, número de série 62-20207, recebeu essa modificação assim como um novo sistema hidráulico e melhorias na construção e nos sistemas. Ele decolou pela primeira em 17 de julho de 1965 e atingiu Mach 3 em 3 de janeiro do ano seguinte – meses depois, um marco: 33 minutos de voo a três vezes a velocidade do som.

Clip de papel

Os problemas, no entanto, persistiam e quase levaram a acidentes. Em março de 1966, o protótipo número 1 não conseguiu travar o trem de pouso por uma falha no sistema hidráulico. Apesar disso, os pilotos conseguiram fazer um pouso controlado em Edwards mas precisaram de quase 5 km de pista para parar terminando a aventura com um leve cavalo de pau.

Um mês depois e o XB-70 estava novamente flertando com a sorte, desta vez com o protótipo nº 2. Falhas hidráulicas e elétricas não permitiram que o trem de pouso frontal fosse estendido, obrigando a tripulação a tentar duas vezes pousar apenas com trem principal, na esperança de forçar a bequilha a abrir. Enquanto queimavam combustível para um inevitável pouso de emergência, a equipe do XB-70 sugeriu contornar o fusível do circuito elétrico, mas não havia um condutor no avião capaz disso até que o co-piloto Joe Cotton improvisou um mísero clip de papel e o trem baixou.

Acidente improvável

A maré de sorte do Valkyrie, no entanto, acabaria meses depois. Naquela altura, o programa havia recebido mais verbas para testes ainda mais avançados nas mãos da NASA e a aeronave número 2 havia sido escolhida para realizá-los.

Na manhã do dia 8 de junho de 1966, uma quarta-feira, o XB-70 62-20207 decolou de Edwards para mais uma série de testes e também para participar de uma sessão de fotos com outras aeronaves, todas elas equipadas com motores da General Electric, que aproveitou a ocasião para produzir material de propaganda.

Na formação, o Valkyrie estava acompanhado dos caças F-4 Phantom II, F-104 Starfighter, F-5 Tiger II e do avião de treinamento T-38 Talon – no papel de base dos fotógrafos, um jato executivo Learjet.

As belas imagens registradas a bordo do jatinho não anteviam o desastre que aconteceria em segundos. Ao se separar após a formação em voo, o piloto Joe Walker do caça Starfighter se aproximou perigosamente da cauda direita do XB-70, entrando na região onde os vórtices gerados pelas pontas das imensas asas do bombardeiro passavam.

O F-104 perdeu o controle, girando e atingindo a parte traseira do XB-70, destruindo parte da cauda e das asas do gigante. Enquanto o avião de Walker virava uma bola de fogo, vitimando seu piloto, o bombardeiro seguiu voando por alguns segundos, como se não houvesse dano grave.

Então, o avião começou a girar sem controle entrando num parafuso irrecuperável. Enquanto um dos pilotos (Carl Cross) não sobreviveu, Al White, experiente piloto de testes do avião, conseguiu ejetar mas sofreu ferimentos graves ao deixar a aeronave.

De volta ao ar

White não só sobreviveu ao acidente, mesmo com um dos braços esmagado pela cápsula de ejeção como no mesmo ano voltou a trabalhar, desta vez na companhia aérea TWA e acabou se tornando um dos grandes investigadores de acidentes aéreos, simulando em solo as condições que causaram essas perdas.

Quanto ao XB-70, já sob os cuidados da NASA, o primeiro protótipo recebeu modificações incluindo um sistema aprimorado de ejeção, voltando a voar no final de 1966. Em abril do ano seguinte, o Valkyrie iniciou os voos de testes executados pela agência espacial americana, mas o fato de não ser capaz de atingir Mach 3 reduziu o escopo do projeto, planejado originalmente para o segundo avião.

Mesmo assim, o XB-70 vou mais uma dezena de vezes e chegou a atingir Mach 2.57 num deles. A maior contribuição do jato para a pesquisa de voos supersônicos foi ajudar na pesquisa de turbulências em altas velocidades que ocorrem em tempo claro e mudanças de temperatura, causando riscos ao voo. Um sistema de redução de vibração foi testado com sucesso no avião no final da década de 60, pouco antes do seu último voo, realizado em 4 de fevereiro de 1969, quando então seguiu para o museu da Força Aérea dos Estados Unidos, na base aérea de Wright-Patterson, em Ohio, onde permanece em exposição.

O segundo protótipo acumulou mais 92 horas de voo em 46 decolagens até o acidente fatal. Já o primeiro XB-70 voou por 83 vezes permanecendo no ar por cerca de 160 horas. Um tempo curto, mas altamente valioso para a história da aviação.

Até hoje quem visita o museu onde está o solitário XB-70 tem a rara oportunidade de enxergar o futuro num ambiente que respira o passado.

XB-70: lições para o futuro da aviação (USAF)
XB-70: lições para o futuro da aviação (USAF)

Veja também: Aurora, o avião mais misterioso do mundo

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  1. Só passei para dizer que esse é um dos melhores blogs do Brasil. A qualidade das matérias, os níveis de pesquisa, são os melhores. Meu parabéns. Desejo muito sucesso para vocês para assim sempre nos presentearem com matérias excelentes como essa.

    Forte abraço!

  2. Interessante notar, nesse espetacular avião, que os pneus, assim como no SR-71, são compostos de borracha impregnados com alumínio, para aumentar a resistência destes ao excessivo calor nas operações de pouso e decolagem. Percebam nas fotos a aparência “aluminizada” dos pneus.

  3. Por falar em titânio do SR-71, seria legal um artigo sobre o mesmo, falando de onde (surpreendentemente) esse material vinha, hehe

  4. Excelente matéria!!

    Um detalhe: a ponta das asas apontada pra baixo também tinha um efeito importante no equilíbrio da aeronave.

    Ao entrar em voo supersônico, o balanço aerodinâmico é alterado, sendo necessário compensar isso de alguma forma.

    No Concorde, isso era feito através da transferência de combustível para um tanque no cone de cauda e gastando o combustível dos tanques mais à frente no começo do voo.

    Outra opção, a deflexão de alguma superfície como canards ou trim de estabilizador, por exemplo, tem uma penalidade de arrasto, o que pode ser proibitivo em voo supersônico.

    Assim, tanto na XB-70 como no Concorde, o aumento do grau do diedro negativo na ponta da asa tinha um efeito de diminuir o passeio do centro de pressão para trás, ou seja, diminuía os efeitos do desbalanceamento aerodinâmico causado pelas velocidades supersônicas.

    No Concorde, esse abaulamento da asa ocorria a partir dos motores externos:
    http://avionale.com/wp-content/uploads/blogger/–rfnaM_QVc8/UJBxFJI6guI/AAAAAAAAM2w/pf8h0LyQIJ0/s1600/concorde.jpg

  5. Sensacional !!! Verdadeira reportagem, garimpagem, dados históricos e interessantes sobre esta intrigante aeronave.
    Imperdível, principalmente para os aficionados da aviação.
    Parabéns ao autor e ao site !!!

  6. A matéria está excelente, muito precisa. Eu tive o privilégio de ver este avião (e passar a mão nele) no museu em Ohio, quando trabalhava em Detroit. É realmente impressionante seu tamanho e imponência.
    Apenas como uma observação, o nome da base aérea da USAF e do museu é Wright-Patterson, e não White-Patterson. O primeiro nome vem dos irmãos Wright (o Santos-Dumont deles), que eram de Dayton, Ohio.
    No mais, está fantástica a matéria, parabéns!

  7. Caro, Marcos, obrigado pelo alerta. Já corrigi o nome da base. E que privilégio ver o XB-70 de perto. Ainda espero fazer o mesmo!
    Abraços,
    Ricardo Meier

  8. O Valkyrie foi uma das plataformas de teste para desenvolvimento de tecnologias de voo a alta velocidade que se criaram nos anos 50 e 60. isso incluiu avanços em aerodinâmica, sistemas de controle automáticos, motorização, materiais compostos, processos construtivos e por ai vai. Várias dessas plataformas não se tornaram aviões de produção mas ofereceram sua contribuição à aeronáutica. O XB-70 não chega a ser um avião do futuro e sim um protótipo do passado que serviu para ensinar muitas coisas (tanto o que fazer quanto o que não fazer). Se fosse projetado hoje, seria completamente diferente, tanto em aplicações militares quanto comerciais. Mas sem dúvida suas lições continuam vivas e úteis

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