Após gastar R$ 191 milhões, Marinha teria abandonado projeto de avião embarcado multimissão
Aeronaves KC-2, de reabastecimento aéreo e transporte, seriam baseadas no antigo bimotor Grumman C-1A Trader e usadas no porta-aviões NAe São Paulo, que foi afundado no litoral brasileiro em fevereiro

Um projeto que muita gente nem sabia que existia teria sido encerrado sem nenhum alarde. Em fevereiro, conforme publicado no Diário Oficial da União (DOU), a Marinha do Brasil (MB) extinguiu o Grupo de Fiscalização e Recebimento das Aeronaves COD (Carrier On-board Delivery/Entrega a Bordo de Porta-aviões) / AAR (Air-to-Air Refueling/Reabastecimento aéreo).
A equipe desmontada pela MB, que ficava baseada nos Estados Unidos, era responsável por acompanhar o processo de modernização das aeronaves Grumman C-1A Trader que seriam convertidas para o padrão KC-2 Trader, de reabastecimento aéreo, mas com motores turboélices no lugar dos radiais e a adição de novos equipamentos. O grupo também faria o recebimento desses aviões.
Na Portaria (nº 21/MB/MD, de 10 de fevereiro de 2023), a MB também informou que as atribuições do grupo de fiscalização e recebimento dos KC-2 foram transferidas para a Diretoria de Aeronáutica da Marinha. O assunto veio à tona em março após a publicação de um despacho da Marinha do Brasil no DOU.
Faltou explicar o que será feito com as aeronaves, que foram adquiridas (oito células ao todo) de estoques da Marinha dos Estados Unidos em 12 de agosto 2010 por US$ 234 milhões, de acordo com o website Tecnodefesa.
Além disso, a Marinha desembolsou mais de R$ 191 milhões no projeto de conversão e modernização entre 2015 e 2021, segundo dados levantados por AIRWAY.
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Este site enviou questionamentos para a Marinha, mas após três semanas de espera, não obteve resposta, por e-mail ou telefone, aos pedidos de comentários sobre o destino dos KC-2 Trader. E possivelmente nem irá responder já que assunto foi colocado sob sigilo de cinco anos por tratar de “informações classificadas”.
Foi a única resposta obtida por AIRWAY, após solicitar esclarecimentos por meio da Lei de Acesso à Informação. Em mensagem eletrônica enviada em 10 de abril, a Marinha afirmou que “os dados solicitados são informações classificadas como reservadas” desde 18 de agosto de 2021. O prazo para que o assunto deixe de ser sigiloso termina em agosto de 2026.

Programa KC-2 Trader
Pensado numa época em que a Marinha do Brasil ainda tinha grandes ambições de realizar operações com aeronaves de asa fixa a bordo do porta-aviões NAe São Paulo, o programa KC-2 previa a revitalização e modernização de quatro dos oito C-1A comprados – os demais aviões serviriam para fornecer peças sobressalentes.
O C-1 Trader não é estranho ao Brasil já que se trata da versão de transporte do conhecido avião anti-submarino Tracker, que foi operado pela Força Aérea Brasileira a bordo do porta-aviões Minas Gerais.
A atualização das aeronaves seria realizada pela Marsh Aviation, em Mesa, no estado do Arizona, nos Estados Unidos, após a assinatura de um contrato no valor de US$ 69,2 milhões em outubro de 2011.
Pouco tempo depois, a Marsh teve problemas com a Justiça dos EUA e perdeu a certificação para executar serviços para clientes estrangeiros. Por isso a Marinha negociou a entrada da empresa israelense Elbit Systems no projeto, que foi então transferido para as instalações da M7 Aerospace, em San Antonio, no Texas. O valor do contrato, no entanto, foi majorado para US$ 109,4 milhões em 2014.
A principal mudança nas aeronaves era a instalação de motores turboélices (modelos Honeywell TPE331-14GR) no lugar dos antigos motores radiais do projeto original do C-1A, avião naval multimissão projetado pela Grumman na década de 1950. Fora isso, os KC-2 teriam painel de instrumentos com telas digitais, sistema de navegação moderno, novos rádios, entre outros recursos. Os aviões atualizados, contudo, nunca decolaram.

Na Marinha do Brasil, os KC-2 seriam operados pelo 1º Esquadrão de Aviões de Transporte e Alarme Aéreo Antecipado (VEC-1). Sem receber os aviões, o grupo nunca foi ativado – embora alguns tripulantes da MB tenham passado por treinamentos de voo em porta-aviões com a Marinha dos EUA.
Os KC-2 Trader do VEC-1 eram propostos para cumprir missões de transporte logístico embarcado e voos de reabastecimento aéreo em apoio aos caças AF-1M Falcão (designação da MB para o McDonnell Douglas A-4 Skyhawk).
Porém, com a desativação do NAe São Paulo, o uso de aviões embarcados, o único tipo que a MB é autorizada a operar, ficou bastante limitado – os AF-1M, por exemplo, operam atualmente a partir da Base Aérea Naval de São Pedro da Aldeia (RJ).

De acordo com os poucos dados disponíveis, o contrato original, de número 43.000, teve quatro aditivos, o último deles assinado em 17 de junho de 2019 e com vigência até 12 de outubro de 2021. O último pagamento à Marsh foi feito em 18 de junho desse mesmo ano e, como se viu, o assunto foi tornado sigiloso dois meses depois.
De fato, a utilidade do KC-2, um avião para uso embarcado, perdeu qualquer sentido após a Marinha ter descomissionado o problemático porta-aviões São Paulo, mas isso ocorreu em 2017. Desde então, foram feitos desembolsos de R$ 158 milhões para o programa, mesmo sem que um navio capaz de operá-los estivesse sendo buscado pela força militar.
Em fevereiro, o São Paulo foi a pique na costa de Pernambuco após uma novela sobre seu destino. Já o programa “COD/AAR” segue um mistério afinal os detalhes de seu contrato não constam do site de transparência do governo federal.