Céus coloridos: a história da Transbrasil – Parte 1

Companhia aérea nascida como Sadia Transportes Aéreos foi uma das mais conhecidas empresas do setor e marcou época com a pintura diferenciada de seus aviões
No auge do Boeing 727-100 na TransBrasil, a empresa operou 19 aeronaves entre 1974 e 1989, a maior frota do modelo na América do Sul.

A Transbrasil é lembrada na aviação pela vivacidade de suas pinturas, sua ousadia e, principalmente, a perseverança de seu fundador, Omar Fontana, em colocar entre as principais empresas aéreas do país.

Nascimento

Omar Fontana era o terceiro filho de Attilio e Dina Fontana. Com o falecimento de sua mãe quando tinha quatro anos, Omar foi estudar em São Paulo por iniciativa de seu pai. Em um certo dia, no pátio do Liceu Sagrado Coração de Jesus, o jovem Omar viu um avião sobrevoando o local. A imagem o marcou, era o início de sua longa e incondicional paixão por aviões.

Omar gostaria de ser piloto, mas sabia que enfrentaria oposição de seu pai, que preferia ver seu filho comandando a empresa da família, a Sociedade Anônima Concórdia, ou simplesmente SADIA, frigorífico estabelecido em Concórdia, em Santa Catarina.

Para realizar seu sonho de ser piloto, Omar Fontana vendeu a coleção da Enciclopédia Britânica – na época um artigo de luxo. Com os valores obtidos e mais alguns trocados da mesada, conseguiu pagar as primeiras horas de pilotagem em São Paulo. Ao completar 18 anos, ganhou do pai um Cadillac e viu a oportunidade de vender e pagar mais aulas, até o plano ser descoberto por Atillio, que o repreendeu e disse que não criou seu filho para ser “chofer de avião”.

Attilio trouxe Omar de volta para Concórdia e o colocou para trabalhar na parte administrativa da SADIA. Posteriormente, retornou à São Paulo para cursar a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Já casado com Denilda Pereira, Omar se desdobrava em atividades: estudava de manhã, à tarde trabalhava nos escritórios da SADIA e à noite fazia voos na Panair do Brasil como co-piloto e também para aprender mais sobre pilotagem. Os funcionários da Panair do Brasil descreviam Omar como um aluno atencioso e muito competente em pilotar, assumindo várias vezes o posto à esquerda da cabine dos DC-3.

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Em uma dessas viagens, observou que havia sempre um DC-3 da Panair parado nos sábados e domingos em Congonhas. Quando soube que o motivo era a ausência de tráfego executivo nos finais de semana, Omar viu uma oportunidade: por que não usar o avião para pegar carnes da SADIA e trazer a carga para São Paulo? O tempo de trajeto seria reduzido de três dias para pouco mais de duas horas e seria possível ter mais opções de produtos da empresa em São Paulo.

Omar levou a proposta ao seu pai e, mesmo sabendo que era uma estratégia de seu filho para entrar na aviação, Atillio acatou a ideia de alugar um DC-3 da Panair nos fins de semana para operar entre Santa Catarina e São Paulo.

O sucesso da operação foi tão grande que eram necessários mais aviões, aí Omar teve a ideia de criar uma companhia aérea. Attilio encarou como absurdo a ideia, mas apresentou a proposta aos conselheiros da SADIA e eles foram unânimes em aprovar.

Com autorização dada, Omar foi à Panair do Brasil e negociou a compra do DC-3 PP-PCJ, que seria revisado e entregue à SADIA como PT-ASJ. É importante lembrar que na época a matrícula “PT” era destinada à empresas não regulares, com tributação diferenciada por ser entendido como uma operação particular e não comercial.

Em 05 de janeiro de 1955 era fundada a SADIA S.A Transportes Aéreos, e meses depois alterou sua finalidade para o transporte aéreo regular. Um ano depois recebeu a autorização para realizar voos regulares.

PP-ASJ foi a primeira aeronave da TransBrasil, ainda operando como SADIA. Foto: Reprodução.

A SADIA foi rápida no crescimento: já em 1965 a frota de aviões incluía mais dois DC-3 (C-47) além do PP-ASJ e dois Curtiss Commando (C-46). A malha de voos já chegava no Sul de Minas Gerais, Rio de Janeiro, interior do Paraná e de Santa Catarina. Naquele ano a empresa transportou 22 mil passageiros, um feito notável para uma novata no setor. A empresa, ainda pequena, era como uma grande família e todos trabalhavam em espírito colaborativo. Neste período Omar pilotava os aviões e sua esposa Denilda preparava o serviço de bordo durante a madrugada e costurava as cortinas dos aviões.

Este desempenho chamou atenção de Linneu Gomes, presidente do poderoso Consórcio REAL Aerovias e que conhecia Omar desde um desentendimento sobre uma venda dupla de um DC-3 por vendedores. Em agosto de 1957, a REAL comprou 50% da SADIA e Omar Fontana passou a ser diretor do tráfego doméstico do conglomerado, posteriormente sendo alçado ao posto de vice-presidente internacional, um cargo de destaque na empresa aérea que era a sétima maior do mundo no ranking da IATA.

A REAL Aerovias teve um papel fundamental na formação de Omar Fontana como executivo da aviação. Foto: San Diego Air & Space Museum.

Foi um período de intensa aprendizagem para Omar em termos de gestão de empresa aérea. Na REAL, ele tomou ações que mais tarde viriam ser uma característica dele: quando pilotava ou conhecia um avião, se apaixonava ao ponto de querer tê-lo na frota. Na empresa de Linneu Gomes chegou a negociar a compra dos DC-6, do Electra e na conversão da encomenda dos Convair 880 para 990.

A fortuna da REAL mudaria devido à ressaca do plano “50 anos em 5” do presidente Juscelino Kubistchek e por mudanças cambiais no pagamento de aviões, peças e serviços pela  Superintend​​ência da Moeda e do Crédito – SUMOC. Em agosto de 1961, a VARIG comprou todo o Consórcio REAL Aerovias e lançou oferta para compra os 50% que Omar ainda possuía na SADIA. Omar não só negou a venda como comprou os 50% de volta para a empresa em outubro daquele mesmo ano. A SADIA voltava a ser independente.

Lutando entre as grandes

A SADIA estava sozinha no mercado agora, porém, mais robusta e com malha maior. Nessa época fez sua única compra durante sua vida operacional: em 26 de outubro de 1962 adquiriu 80% da T.A.S – Transportes Aéreos Salvador. O resultado foi uma malha de 53 cidades que ia desde o Rio Grande do Sul até o Nordeste, colocando a SADIA em destaque nacional. As aeronaves posteriormente teriam a pintura SADIA Salvador.

Entretanto, seu tamanho contrastava com a frota dos já cansados C-46 e C-47/DC-3. Não era somente a SADIA que estava com este dilema de substituir os veneráveis aviões. Neste período, a britânica Handley Page veio ao Brasil apresentar para as companhias aéreas o turboélice HPR.7 Herald, como substituto dos bimotores à pistão. Omar não só gostou da aeronave como também a pilotou em companhia do Duque de Edimburgo, marido da Rainha Elizabeth II.

Decidido a comprar a aeronave, Omar foi até Brasília pedir apoio das autoridades, que se mostravam céticas com o empresário. Para conseguir apoio, o comandante fez 234 voos entre Rio de Janeiro e Brasília para coletar assinaturas a fim de pressionar a liberação de aeronaves pelo Departamento de Aviação Civil – DAC. No fim, o órgão concedeu a autorização da SADIA trazer cinco Dart Herald – como as aeronaves passaram a ser conhecidas aqui – e a importação provisória de dois modelos enquanto que os primeiros encomendados não chegassem.

O turbo-hélice Dart Herald foi um dos primeiros aviões da Sadia e fundamental para a transição da empresa de empresa regional para nacional. Foto: Christian Volpati via Wikimedia Commons.

O primeiro Dart Herald, PP-ASU, chegou em seis de dezembro de 1963, sendo colocado em operação comercial no dia 18 do mesmo mês. O Dart Herald provou ser uma aeronave confortável, resistente aos precários aeródromos do interior brasileiro, robusta e de fácil pilotagem.

A partir de então o crescimento da SADIA foi alicerçadao nos bimotores ingleses. Um fato curioso foi que a SADIA trouxe para o período de testes o Shorts Skyvan, para as rotas menores que os Dart Herald. Apelidado de “Patinho Feio” por sua ausência de beleza, a intenção da SADIA era trazer mais aeronaves, porém, o governo militar já vinha sendo rigoroso na compra de aeronaves, com objetivo de fomentar a EMBRAER.

A SADIA sabia que os Dart Heralds eram bons, entretanto ela era a única a não operar jatos puros no país, colocando o serviço da empresa em desvantagem. Omar sabia que era necessário entrar na era do avião à jato – era isso ou definhar diante da concorrência.

Uma década de jato

No final da década de 1960, as reformas econômicas feitas pelo governo militar começaram a surtir efeito, com o início do “milagre econômico”, que marcou por alguns anos o crescimento do PIB a dois dígitos. Para aviação, também foi a recuperação depois da forte retração que teve desde 1960.

Neste contexto, a SADIA ambicionava voos mais altos e se voltou novamente à Inglaterra para uma nova etapa: a era do jato puro. O avião escolhido foi o BAC-1-11-500, popularmente conhecido como One-Eleven, e que foi introduzido no Brasil pela VASP em 1967. Três unidades foram encomendadas à British Aircraft Corporation e enquanto não recebia os modelos, a empresa arrendou da Austral um modelo, PP-SDP, nas cores híbridas da empresa argentina. O avião se tornaria o primeiro jato da empresa ao chegar em Congonhas no dia 17 de setembro de 1970.

O BAC 1-11-500 da SADIA no Aeroporto do Galeão, nas cores básicas da Austral. Nota-se que a bandeira da Argentina foi pintada com outras cores e a adição da logomarca da empresa, o sol. Foto: Vito Cedrini via Airliners.net.

Configurados com apenas 86 assentos contra os 109 oferecidos pelo fabricante, os One-Eleven foram colocados na rota que ia de Porto Alegre até Recife, passando pelas principais praças brasileiras, além de novas ligações entre São Paulo (Congonhas), Rio de Janeiro (Galeão) e Brasília. Mudanças ocorreram a bordo também, com a adoção do Cisne Real, serviço refinado de atendimento, novos uniformes para as “Anfitriãs do Ar”, como passaram ser chamadas as comissárias de voo. Tudo isso era coroado com o apelido do avião, “Jatão”, devido à surpresa da filha do Omar ao ver o novo jato.

Os números da SADIA refletiam isso: aumentos exponenciais de passageiros e o ponto de equilíbrio financeiro para operar os “Jatões” tinha sido atingido em oito meses de operações. Esta empolgação e os planos ambiciosos de Omar refletiram em duas ações de impacto na aviação comercial brasileira daquela época: mudar o nome de SADIA para Transbrasil, refletindo melhor sua atuação nacional e sem criar vínculos com o frigorífico da família. A segunda decisão foi transferir a sede da empresa de Congonhas para Brasília, centro geográfico do país e sede do poder. Enquanto as concorrentes concentravam suas sedes em São Paulo ou Rio de Janeiro, a Transbrasil apostava na novata capital.

O One-Eleven representou o divisor de águas no serviço de bordo da TransBrasil e foi o período que a empresa investiu fortemente em propaganda.

Neste intenso ano de 1972, a Transbrasil trouxe o terceiro modelo do lote encomendado em 1969: o PP-SDS, com o novo padrão visual da empresa. Era uma revolução nas cores, com a parte superior em amarelo e a inferior em vermelho, ganhando o apelido de salsicha & mostarda. Era também o início de um período muito prolífico de pinturas na TransBrasil, refletindo a psicodelia dos anos de 1970.

No ano seguinte, em 10 de abril, a empresa marcou história mundial ao receber o primeiro turboélice de passageiros fabricado pela Embraer: o EMB-110 Bandeirante, de matrícula PT-TBA, que foi colocado em operação no dia 16 do mesmo mês.

Era parte da política do governo incentivar a indústria nacional e a Transbrasil foi muito sensível no momento, sabendo que se fosse a primeira operadora, ganharia pontos com o Ministério da Aeronáutica. A chegada dos Bandeirantes também marcou o início da retirada dos Dart Heralds, que começaram a ser vendidos por valores bem próximos ao que Omar pagou dez anos antes, fazendo bons negócios com os turboélices ingleses.

A Transbrasil foi o primeiro operador do Embraer Bandeirante na aviação comercial (Embraer)
A Transbrasil foi a primeiro operadora do Embraer Bandeirante na aviação comercial. Foto: Embraer.

Durante o Salão Internacional Aeroespacial, realizado em setembro de 1973 em São José dos Campos e São Paulo, Omar conheceu e pilotou o mais novo produto da indústria aeronáutica europeia: o A300, ainda chamado de Airbus, em alusão ao consórcio que foi feito especialmente para o programa e depois viraria uma das líderes do mercado. Após viagem a Toulouse para discutir os pormenores do negócio, Omar Fontana anunciou que a Transbrasil encomendaria dois modelos, um para ser entregue em 1974 e outro no ano seguinte. O DAC barrou o negócio, alegando que haveria desbalanço na oferta de assentos entre as empresas aéreas.

Analisando retrospectivamente os fatos, talvez esta negação tenha sido a melhor coisa que aconteceu com a Transbrasil naquela época, pois o A300 transportaria o dobro de passageiros que um Boeing 727-100, que era a maior aeronave dedicada a serviços doméstico no país.

A proibição de importar os A300 não abalou Omar, que trouxe mais jatos One-Eleven para reforçar a frota, cada um com uma pintura diferente. A empresa passou a ter cores distintas para cada aeronave, inspirada no modelo da Braniff International.

Estes primeiros anos foram de novidades para a Transbrasil, seja na mudança de nome, nas cores psicodélicas e únicas de suas aeronaves, às inovações no serviço de bordo, e no pioneirismo de ter telefone a bordo dos aviões – ainda que funcionasse apenas próximo à Brasília.

A empresa também construiu um dos maiores hangares do Brasil na capital federal e que era apto a receber aeronaves widebody. Além disso, a Transbrasil participava da Rede Postal Noturna, um serviço realizado em conjunto com os Correios a partir de agosto de 1974 na qual os “jatões carteiros” levavam cartas e encomendas para todo o Brasil durante a madrugada, uma excelente ideia de aproveitar a ociosidade dos aviões e aumentar as margens de lucratividade.

Trimotor da Boeing

Em outubro de 1974, a Transbrasil dava outro passo significativo em sua história ao incorporar seu primeiro Boeing 727-100, o PT-TCA, ex-Pan American.

Os 727 da TransBrasil deixavam os aeroportos mais coloridos. Para cada avião, uma pintura diferente, algo impensável nos dias atuais. Foto: Clinton Groves via Wikimedia Commons.

Estas ações mantinham a Transbrasil em evidência em um cenário que não agradava a Omar: o governo militar acreditava que havia companhia aérea demais para passageiro de menos e que em vez de quatro empresas aéreas, bastavam três.

Começava o jogo de cadeiras, na qual a Transbrasil foi cogitada em unir-se com a VASP ou Cruzeiro do Sul. A primeira significava o fortalecimento da empresa paulista e a segunda seria unir a menor das quatro com a mais problemática financeiramente. Omar era irredutível em fusão com outra empresa, mesmo que mantivesse uma posição majoritária. A perseverança do executivo valeu a pena já que no fim a Cruzeiro do Sul foi comprada pela VARIG e a TransBrasil permaneceu em seu voo solo.

Neste período, meados da década de 1970, o ritmo de crescimento do Brasil havia diminuído devido ao choque de petróleo, e a Transbrasil começava a unificação da frota com a compra de mais 727-100 usados, com os Dart Herald sendo retirados em 1976 e os Bandeirantes repassados para a novata Nordeste Linhas Aéreas, empresa do SITAR na qual a TransBrasil detinha 33% das ações.

Vale destacar que, a despeito do tamanho da empresa, a Transbrasil era a líder no mercado soteropolitano por anos, então naturalmente a sede da Nordeste seria lá.

O primeiro avião empregado pela Nordeste foi Embraer EMB-110 Bandeirante, ainda nas cores básicas da TransBrasil. Foto: Vito Cedrini.

Em 21 de abril de 1978, ocorreu o último voo do One-Eleven da TransBrasil, PP-SDU, encerrando um capítulo de quase oito anos de operações na qual a aeronave ajudou a empresa a se firmar entre as grandes e garantir seu espaço em um mercado tão atribulado.

A frota agora seria apenas de Boeing 727-100, a maior do modelo na América do Sul, cujos aviões voavam intensamente: de dia, passageiros, e à noite as cargas da RPN, tornando a Transbrasil recordista mundial em horas diárias de utilização do modelo.

A Rede Postal Noturna foi uma ideia genial de Omar Fontana, com passageiros voando de dia e carga à noite, graças à versatilidade dos Boeing 727 QC, Quick Change.

Destacavam-se também as inúmeras variações de pintura, ora para festejar as riquezas naturais quanto os “Energias Coloridas”. Sua frota colorida não passava despercebida nos aeroportos em que operava, trazendo reverência em uma concorrência que tinha padrões de pintura mais sisudos e conservadores.

Em 1979 seria a vez de adotar uma pintura única. Inspirada na transição de cores que a Air France fez no Concorde, a Transbrasil colocou nos seus 727 a transição das cores do arco-íris, cuja vivacidade e criatividade ainda é relevante nos dias de hoje. Apesar da unificação da pintura corporativa, sutilezas as diferenciavam: cada aeronave tinha o logotipo de cor distinta, assim como as asas.

Os anos 80 chegavam com perspectivas positivas para a inovadora companhia aérea, porém, o futuro guardava tristes surpresas para a empresa de Omar Fontana.

Confira em breve a segunda parte da saga da Transbrasil.

727-100 com a pintura do arco-íris: visual entre os mais bonitos da aviação. Foto: Pedro Aragão via Wikimedia Commons.

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