Cobaias aéreas
Apesar da comoção gerada, incidentes como o que ocorreu com o KC-390, da Embraer, são parte da realidade dos testes em voo de uma nova aeronave


Desde que os irmãos Wright e Santos Dumont (além de outros corajosos desbravadores dos céus) resolveram tornar o avião uma realidade o risco de um acidente sempre fez parte do jogo. Naquela época, coube a Wilbur Wright e ao próprio Santos Dumont testarem suas máquinas aéreas, mas há várias décadas essa missão é realizada por pilotos e tripulantes de testes, profissionais preparados para extrair o máximo de seus protótipos, mas que têm ciência de que uma decolagem num avião experimental pode ser a última.
Hoje em dia, a segurança desses ensaios aumentou consideravelmente. Projetos mais precisos e simulações em computador antecipam muitos potenciais problemas que são corrigidos antes mesmo de o primeiro protótipo decolar. Mas nunca se deve esquecer: um voo de testes serve para isso mesmo, conferir os limites reais de uma aeronave, ou seja, elas são como “cobaias aéreas”.
Por essa razão, o incidente com o novo cargueiro da Embraer, o KC-390, apesar de grave, não pode ser considerado algo incomum como fez parecer a comoção causada pela sua divulgação.
Embora a Embraer não tenha esclarecido a causa do incidente, que fez o jato perder altitude e atingir, segundo apurado por Airway, cerca de 4.8 G de aceleração (valor suportado por caças de combate), a revelação do funcionário da fabricante à revista Aero Magazine apontou que o desprendimento de um equipamento teria provocado a mudança do centro de gravidade do avião.
Se isso for confirmado, trata-se de um procedimento externo ao avião em si. Em outras palavras, não é algo que denota incapacidade do KC-390. Mesmo assim, a aeronave e sua tripulação conseguiram retomar o controle após ocorrer o estol (quando há perda de sustentação).
Mas é preciso explicar que o KC-390 estava sendo testado justamente para isso, um estol, ou seja, uma situação em que há enorme risco de se perder o controle do voo. Além disso, é praxe ir além do chamado “envelope de voo”, parâmetros que serão utilizados em voos comuns após a homologação.
E, apesar dos imensos esforços sofridos pela fuselagem, o protótipo PT-ZNF teve danos restritos e voltará ao programa de testes, segundo a Embraer – ao contrário da suposição de que teria sido inutilizado.
Capacete em aviões comerciais
Felizmente, o episódio não causou nenhum ferimento aos ocupantes do KC-390. No entanto, casos de perda de protótipos ainda ocorrem com alguma frequência, sobretudo em aviões militares cujas missões exigem uma performance “especial”. Em agosto deste ano, por exemplo, o único protótipo do S-97, novo helicóptero avançado da americana Sikorsky, fez um pouso forçado na California sem que seus ocupantes tivessem se ferido.
Os tripulantes de outro projeto avançado, o helicóptero 525 Relentless, da Bell, já não tiveram a mesma sorte. Em julho do ano passado, um dos três protótipos perdeu controle e se chocou com o solo matando seus dois pilotos. Não é por acaso que mesmo em certos tipos de protótipos os pilotos de testes utilizam capacetes e muitas vezes até para-quedas, um sinal claro que cada voo de teste é diferente de outro.

O episódio do KC-390, no entanto, tomou corpo porque foi notado por pessoas que acompanham a aviação logo no dia em que ocorreu, no feriado de 12 de outubro. Por meio de aplicativos como o Flight Radar, foi possível acompanhar o voo de teste do avião da Embraer, que embora seja privado e restrito a uma área delimitada, precisa informar sua posição para o controle de tráfego aéreo.
A queda abrupta da aeronave (de 6 mil metros para mil metros de altitude numa região em que o solo está a cerca de 700 metros) acabou repercutindo nas redes sociais e, embora tendo sua gravidade desmentida pela fabricante, não foi suficiente para esclarecer o que de fato havia ocorrido. Com isso, sobrou espaço para que teorias mais graves ganhassem vulto como a que dizia que o protótipo havia sido tão afetado pelo problema que seria abandonado.
Há ainda um aspecto que complica um pouco mais a situação. Por ser uma aeronave militar, cujo desenvolvimento está sendo acompanhado pela Força Aérea Brasileira (FAB), principal cliente, qualquer informação sobre seu desenvolvimento esbarra no sigilo que envolve a estratégia de defesa do país.
Espera-se que o programa possa de fato seguir sem atrasos e que os voos do KC-390 sejam feitos com segurança. Afinal, trata-se do maior avião já projetado e desenvolvido no Brasil e peça-chave para que o país mantenha sua posição de destaque na indústria aeroespacial.
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