Dassault Mercure: um rasante em direção ao fracasso

Como um avião tão arrojado e ambicioso para sua época se converteu em um dos mais ‘belos equívocos’ da história da aviação comercial?
O Dassault Mercure parecia com um Boeing 737-200, mas era maior e mais avançado (Dassault Aviation)

Era 1967 quando o caça Dassault Mirage III cruzava os ares em velocidade supersônica para estabelecer a supremacia aérea israelense na Guerra dos Seis Dias. Naquele mesmo ano, a Autoridade de Aviação Civil Francesa (DGAC) sugeriu ao empresário francês Marcel Bloch (1892-1986), mais conhecido como Marcel Dassault – nome em código que seu irmão Paul adotara na Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial –, o desenvolvimento de uma aeronave comercial para rivalizar com o Boeing 737-200 e o Douglas DC-9: o Dassault Mercure.

Num golpe estratégico quase certeiro, mas de terríveis consequências, como veremos a seguir, a Dassault colocou em marcha o projeto, financiado pelo tesouro francês. À primeira vista, fazia sentido, afinal, Marcel e a DGAC haviam identificado dois aspectos importantes, tomando como ‘ponto de partida’ a Europa e a posição central ocupada pela França no continente: 1) Inúmeras rotas aéreas correspondiam a pequenas distâncias (das 3.500 rotas analisadas, oito de dez correspondiam a menos de 1.500 km); e 2) Inexistia um avião apropriado para aquele tipo de percurso.

Como faz ainda hoje, a Dassault fabricava sofisticados jatos executivos (os Falcon) e caças militares (os Mirage) naquela época. A empresa vislumbrou com o Mercure, portanto, a oportunidade de expandir sua atuação para a aviação comercial.

Pois bem, o primeiro protótipo do ‘737 francês’ foi concluído em 1969. Inicialmente, o Mercure 100 contemplava de 110 a 120 assentos – depois, adotou especificações para comportar 150 assentos e alcance de até 1.700 km. Seu voo inaugural ocorreu em 28 de maio de 1971 e cinco dias depois, em 2 de junho, foi apresentado no Paris Air Show, a maior feira de aviação de mundo, para o seu sexto voo com apenas nove horas de voos de teste.

Marcel Dassault e ao fundo o Mercure: “Queria dar um nome a uma figura mitológica e só consegui pensar em alguém que tivesse asas no capacete e ailerons nos pés” (Dassault)

Um ‘mico’ inspirado em um mito

A aeronave era impulsionada por dois motores turbofan Pratt & Whitney JT8D-15. Sua aerodinâmica avançada empregava asas especialmente desenvolvidas para tornar as subidas e descidas dos voos de curta distância mais eficientes. Para criar o par de asas, a Dassault lançou mão dos mais modernos softwares disponíveis até então. Além disso, o tanque de combustível instalado nas asas era menor em função do curto alcance da aeronave, o que reduziu em cerca de 10% o seu peso estrutural e também sua autonomia.

O nome Mercure fora escolhido por Marcel Dassault, explicado em suas próprias palavras: “Queria dar um nome a uma figura mitológica e só consegui pensar em alguém que tivesse asas no capacete e ailerons nos pés – daí o nome Mercure (Mercúrio).”

Em suma, o avião era maior do que o 737-200, tinha capacidade para transportar mais passageiros, voava mais rápido e era mais apropriado para voos de curta distância. Por que, então, deve estar se perguntando o leitor, o Mercure não vingou?

A ‘tempestade perfeita’

Diante da expectativa de posicionar-se entre os grandes da aviação comercial e angariar o interesse das companhias aéreas, abocanhando a fatia de mercado dos voos de curta distância, a Dassault estabeleceu quatro fábricas em solo francês (Martignas, Poitiers, Seclin e Istres) para viabilizar a produção em série da aeronave.

Em 1972, a companhia Air Inter (o único operador da aeronave), que tinha participação acionária do governo da França, firmou pedido de 10 aviões – mais tarde, em 11 de julho de 1973, a empresa  solicitou a conversão de um protótipo para operar comercialmente, o que o tornou o décimo-primeiro avião de sua frota. O primeiro exemplar produzido levantou voo em 19 de julho de 1973, e a certificação civil da DGAC foi obtida em 12 de fevereiro de 1974. O primeiro voo comercial foi realizado em 4 de junho de 1974 no trajeto entre Orly (Paris) a Toulouse, bem como Orly para Lyon.

Uma ‘névoa’, contudo, tirou o Mercure de sua rota. Três meses após o primeiro avião em série produzido sacudir a poeira e apontar para os céus, o choque do petróleo irrompeu em outubro de 1973, reduzindo a margem e capacidade das companhias aéreas em adquirir novas aeronaves. Não bastasse, eram tempos de desvalorização do dólar e índices inflacionários mais altos na Europa do que nos Estados Unidos, o que favorecia os competidores americanos Boeing e McDonnell Douglas.

Até aí, pode afirmar o leitor, são circuntâncias desfavoráveis que podem ser revertidas, certo? Poderiam se não fosse pelo fato de o projeto do Dassault Mercure não ter levado em conta diversos aspectos que foram determinantes para sucumbi-lo como um dos maiores fiascos da história da aviação.

O avião, contudo, havia sido tão bem dimensionado para voos de curto alcance que ficou impossível adaptá-lo para voos mais longos. Enquanto isso, o seu rival 737-200 era capaz de atender setores de curto e médio alcance, bem como ter a sua fuselagem e motores adaptados para atender outros segmentos da aviação.

Em outras palavras, o que era para ser o maior trunfo competitivo do Dassault Mercure tornou-se o seu maior algoz. Sua baixa autonomia tornou-se literalmente uma infame piada – “a aeronave não tinha alcance suficiente para deixar a França” – e incapaz de conectar cidades em países como os Estados Unidos.

Apenas 12 unidades do Mercure foram produzidas, incluindo protótipos (Dassault)

A ‘aterrisagem’ de uma ambição

Para cobrir os custos de produção e empatar o break even (ponto de equilíbrio entre o investimento e o faturamento), no entanto, a Dassault precisava vender entre 120 e 150 unidades do Mercure. A empresa tentou reagir com a versão do Mercure 200C, cuja autonomia era prevista para alcançar 2.500 km. Mas já era tarde, o impacto nas finanças havia sido colossal e o projeto não saiu do rascunho. Era preciso abortar sua produção, bem como a ambição da Dassault em adentrar o nicho da aviação comercial. Era isso ou a falência. Finalmente, a linha de produção foi interrompida em 19 de dezembro de 1975.

Seja como for, as 11 unidades do Dassault Mercure operaram até 1995, transportando mais de 44 milhões de passageiros em cerca de 440 mil voos percorridos em 360 mil horas, com uma regularidade de 98%. Sem nenhum acidente, diga-se de passagem. Menos mau, não?

Um Mercure exposto ao lado de um Caravelle próximo ao Aeroporto de Orly, em Paris (Mathieu Marquer)

Veja também: Por que o Airbus A381 foi um fracasso de vendas?

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