Ataques por engano (e intencionais) contra aviões comerciais acontecem desde os anos 1930

Incidentes desse tipo ocorrem com maior frequência em regiões que enfrentam tensões militares
(Bureau of Aircraft Accidents)
Desastre aéreo no Irã foi o acidente mais grave envolvendo um 737 na série NG (LLBG Spotter)

Autoridades do Canadá, EUA e Reino afirmam que a queda do Boeing 737-800 da Ukraine International Airlines no dia 8 de janeiro de 2020 em Teerã pode ter sido causada pelo disparo acidental de mísseis de defesa aérea do Irã. A tragédia matou todos os 176 ocupantes do avião.

O acidente com o 737 ucraniano aconteceu horas após forças militares do Irã terem atacado posições dos EUA no Iraque. O governo iraniano, todavia, nega que o jato de passageiros tenha sido derrubado por engano pelo seu sistema de defesa, embora evidências mostrem o contrário.

Se de fato confirmado, o desastre com o Boeing da Ukraine pode entrar em uma triste e longa lista de aviões comerciais que foram derrubados por engano ou mesmo de forma intencional por meios bélicos.

Tragédias como essa acontecem com maior frequência em regiões envolvidas em conflitos e zonas de guerra e são um mal que acompanham a aviação comercial desde os seus primórdios.

O próprio Irã já foi vítima de uma situação semelhante. Em 3 de julho de 1988, no final da Guerra Irã-Iraque, um Airbus A300 da Iran Air foi derrubado por mísseis lançados de um cruzador da Marinha dos EUA. O avião foi destruído entre Bandar Abbas e Dubai e todos os 290 passageiros e tripulantes morreram. O jato comercial foi supostamente identificado pelo navio americano como um caça F-14 iraniano em posição de ataque.

Em 1988, um A300 da Iran Air com 290 ocupantes foi derrubado por mísseis lançados de um navio dos EUA (Khashayar Talebzadeh)

Incidente Kweilin

Acredita-se que o primeiro incidente envolvendo um avião comercial derrubado por forças hostis foi a queda do DC-2 “Kweilin”, em voo operado em conjunto pela China National Aviation Corporation (CNAC) e a Pan American. Em 24 de agosto de 1938, durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, o avião transportando 18 passageiros e tripulantes foi cercado por caças japoneses voando em território chinês, ao norte de Hong Kong.

Para evitar ser atacado, o comandante fez um pouso de emergência em um rio e o avião afundou. O acidente matou 15 ocupantes, entre eles importantes banqueiros chineses. Mais tarde, especulou-se que o motivo do ataque dos japoneses era assassinar o filho do presidente chinês Sun Yat-sen, Sun Fon, que deveria viajar no Kweilin. Fon, porém, havia pegado um voo anterior naquele mesmo dia com uma companhia diferente, a Eurasia.

O Kweilin foi retirado do rio onde caiu e colocado em serviço novamente (CNAC)

Após a queda, o Kweilin foi recuperado do fundo do rio, reconstruído e colocado novamente em serviço renomeado como The Chungking. Por uma coincidência do destino, o mesmo DC-2 acabou envolvido em um segundo incidente de abate por aviões japoneses.

Tentando despistar caças do Japão, o piloto americano Walter “Foxie” Kent pousou o Chungking em uma aérea rural em Yunnan, no sul da China, com nove passageiros e três tripulantes, incluindo ele próprio. Os japoneses viram o DC-2 pousar e o atacaram no momento em que parou. Os primeiros projéteis que acertaram o avião mataram instantaneamente Kent. Os demais ocupantes tentaram sair da aeronave, mas foram atingidos enquanto estavam na cabine ou quando corriam pelo campo

Nove ocupantes do Chungking foram mortos (dois tripulantes e sete passageiros). O avião explodiu em chamas e nunca mais voou. Ao contrário do incidente Kweilin, algo até então sem precedentes, os ataques a aeronaves comerciais se tornaram mais comuns durante o curso da Segunda Guerra Mundial e a décadas seguintes.

Vítimas da Segunda Guerra Mundial

Aos menos cinco aeronaves comerciais foram vítimas do fogo cruzado da Segunda Guerra Mundial. O primeiro caso registrado durante o conflito foi o ataque ao trimotor Ju 52 “Kaleva” da empresa finlandesa Aero O/Y (atual Finnair), abatido em 14 de junho de 1940 por dois bombardeiros soviéticos DB-3 enquanto voava de Tallin, Estônia, para Helsinque, na Finlândia.

O incidente com o avião finlandês acorreu durante a paz provisória entre a Finlândia e a União Soviética, que um ano depois voltariam a se enfrentar. O Kaleva foi interceptado poucos minutos depois de decolar de Tallin e foi alvejado pelos DB-3, danificando-o gravemente. A aeronave caiu no mar próximo a ilha de Keri. Todos os sete passageiros e dois tripulantes morreram.

Ju-52 “Kaleva” transportava nove ocupantes quando foi derrubado por aviões alemães (Neittamo)

O ataque até hoje não esclarecido provavelmente fez parte dos preparativos soviéticos para a ocupação da Estônia, que ocorreu dois dias após o incidente com o Kaleva, em 16 de junho de 1940. Temendo uma resposta hostil da União Soviética, a Finlândia na época não prestou nenhuma queixa sobre a perda do avião.

Outro desastre aéreo comercial notório nos anos do conflito mundial foi o abate do Douglas DC-3 “Pelikaan” operado pela companhia holandesa KNILM, extinta em 1947. O avião foi atacado por três caças Mitsubishi A6M “Zero” durante um voo de Bandung, na então Índias Orientais Holandesas (atual Indonésia), para Broome, na Austrália, em 3 de março de 1942.

Os pilotos conseguiram fazer um pouso de emergência em uma praia com danos e um incêndio no motor, mas foi novamente atacado em solo. Entre os oito ocupantes a bordo, o engenheiro de voo do DC-3 e três passageiros foram mortos. O piloto da aeronave, Ivan Smirnov, levava no avião da KNILM uma remessa de diamantes avaliados na época em cerca de 300.000 libras ou 15 milhões de libras (cerca de R$ 79 milhões) em valores recentes. A maior parte da preciosa carga foi perdida ou roubada após o acidente.

No dia 1° de junho de 1943, um DC-3 operado pela British Overseas Airways Corporation (BOAC), foi atacado por oito bombardeiros Junkers Ju 88 alemães. O avião seguia de Portela, em Portugal, para Whitchurch, na Inglaterra. A aeronave caiu no Golfo da Biscaia, matando todos os 17 ocupantes que estavam a bordo, incluindo o ator inglês Leslie Howard.

Os DC-3 eram uma presa fácil para as forças militares do Eixo (Divulgação)

A teoria mais popular em torno da queda do avião da BOAC é que a inteligência alemã acreditava que o então premiê britânico Winston Churchill estava no voo. O assunto foi notícia na imprensa poucos dias após o incidente e o próprio Churchill sustentou a hipótese.

Efeitos colaterais da Guerra Fria

Terminada a Segunda Guerra Mundial, uma nova tensão se instaurou pelo mundo com as disputas por influência entre os EUA e a antiga União Soviética. A tensão entre as duas nações e seus aliados durante o período da Guerra Fria também fez suas vítimas na aviação comercial.

Em um dos momentos de maior impasse da Guerra Fria, com ameaça de um conflito nuclear, no dia 27 de julho de 1955 um Lockheed Constellation da companhia israelense El Al com 58 ocupantes foi derrubado por caças MiG-15 da Bulgária.

A aeronave havia decolado de Viena (Áustria) e seguia para Tel Aviv (Israel), com uma parada em Istambul (Turquia). Talvez por um erro de navegação, os pilotos conduziram a aeronave por engano para o espaço aéreo da Bulgária, que nesse tempo tinha um governo comunista apoiado pela URSS.

O Constellation da El Al foi abatido por caças MiG-15 da Bulgária em 1955 (Divulgação)

Pilotos búlgaros sinalizaram ao Constellation que pousasse e tripulantes da El Al inicialmente fingiram acatar a orientação, abrindo os flaps e baixando o trem de pouso, mas depois os recolheu rapidamente e mudou seu curso para a Grécia, na esperança de escapar dos caças, mas acabou abatido. O avião da empresa israelense estava mais de 200 km infiltrado no território da Bulgária.

Mais adiante o governo búlgaro pediu desculpas pelo episódio e pagou compensações às vítimas, mas manteve sua posição de culpar os israelenses por terem penetrado no espaço aéreo sem autorização.

Ao longo dos anos que compreendem o período histórico da Guerra Fria (de 1945 até 1991) ao menos 16 aeronaves comerciais foram derrubadas.

O acidente mais trágico desse período foi a queda do voo 007 da Korean Air Lines (atual Korean Air) operado por um Boeing 747-200, em 1 de setembro de 1983. O avião com 269 passageiros e tripulantes, incluindo o congressista americano Larry McDonald, viajava de Nova York para Seul (Coreia do Sul), mas acabou desviado da rota e invadiu o espaço aéreo da União Soviética.

Dois jatos da Korean Air foram derrubados por caças Sukhoi Su-15, aeronaves que na época eram a ponta de lança da defesa aérea da União Soviética; os ataques acidentais deixaram 271 mortos (Domínio Público)

Confundido como um avião de espionagem dos EUA, o 747 da Korean foi abatido com mísseis por um caça soviético Su-15. A aeronave caiu próximo da Ilha Moneron, hoje um território no extremo oriente da Rússia. Todos os ocupantes morreram.

O incidente com o Boeing coreando foi um dos momentos mais conturbados da Guerra Fria e levou a uma escalada de sentimentos anti-soviéticos. Como resultado do incidente, os EUA alteraram os procedimentos de rastreamento de aeronaves que passavam pelo Alasca e exigiu dos fabricantes programas de piloto-automático mais avançados.

O desastre com o 747 da Korean também foi um dos eventos que influenciaram a administração do presidente Ronald Reagan a permitir o acesso público ao Sistema de Posicionamento Global (GPS) dos EUA. O sistema começou a ser usado por militares americanos no final dos anos 1970 e foi liberado para o uso civil na década seguinte.

A tragédia do voo 007 foi o segundo avião da Korean derrubado por aeronaves de combate da URSS. No dia 20 de abril de 1978, caças Su-15 abriram fogo contra um Boeing 707 da empresa asiática na região de Murmansk (no extremo ocidente atual da Rússia) que havia violado o espaço aéreo soviético. A aeronave danificada pousou de barriga na superfície congelada do lago Karelian. Dos 109 ocupantes a bordo do jato, apenas dois morreram.

O Boeing 707 da Korean derrubado por não responder aos chamados soviéticos (Bureau of Aircraft Accidents)

Mais tarde foi descoberto que o 707 da Korean teve problemas na bússola da cabine após o avião passar quase diretamente sobre o Polo Norte, causando erros no sistema de navegação, que nessa época utilizavam instrumentos analógicos e estavam sujeitos a esse tipo de falha.

Fogo cruzado na África

Em um período de cinco meses entre 1978 e 1979, a companhia Air Rhodesia, da extinta Rodésia (atual Zimbábue), teve dois aviões derrubados por guerrilheiros do Exército Revolucionário Popular do Zimbábue (ZIPRA).

No primeiro caso, o quadrimotor turbo-hélice Vickers Viscount que cumpria o voo 825 da Air Rhodesia foi abatido logo após decolar do aeroporto de Salisbury. Dos 56 ocupantes a bordo do avião, 18 sobreviveram, mas 10 deles em seguida foram assassinados por rebeldes no local da queda.

A Air Rhodesia perdeu dois Viscount em menos de cinco meses nos anos 1970 (Wemer Fischdick)

Na segunda ocorrência com a empresa rodesiana, outro Viscount foi derrubado novamente partindo de Salisbury. Nenhum dos 59 passageiros ou tripulantes do avião sobreviveram.

A Rodésia vivia nesse tempo uma violenta guerra civil que durou de 1964 até 1979, quando o antigo governo foi derrubado e a República do Zimbábue estabelecida.

No decorrer dos anos 1980, aviões comerciais também foram derrubados do espaço aérea da Líbia, Angola, Malawi e Marrocos, atacados por forças rebeldes ou por militares ao confundi-los como ameaças.

Na década seguinte, em 6 de abril de 1994, o jato executivo Dassault Falcon 50 que transportava o presidente ruandês Juvénal Habyarimana e o presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, foi derrubado quando se aproximava para pousar em Kigali, em Ruanda. Ambos os presidentes morreram. A responsabilidade do ataque é contestada, com investigações apontando como principal suspeito o grupo rebelde Frente Patriótica de Ruanda.

Jato Falcon 50 semelhante ao que transporta os presidentes de Ruanda e Burundi (Merkus Eigenheer)

Lembrança recente

Enquanto ainda vivia o luto pelo misterioso desaparecimento do voo MH370, a Malaysia Airlines sofreu mais um duro golpe. Em 17 de julho de 2014, um Boeing 727-200ER da companhia, voando de Amsterdã para Kuala Lumpur, foi atingindo por um míssil de superfície quando sobrevoava a Ucrânia.

As equipes que investigaram o caso concluíram que a aeronave foi derrubada por um míssil Buk de fabricação russa disparado por rebeldes ucranianos perto de Donetsk, na Ucrânia. Todos os 298 ocupantes do jato morreram. O avião foi atacado durante uma batalha entre forças russas e ucranianas na região que durou cinco dias.

O Boeing 777 matrícula “9M-MRD” foi derrubado por engano por rebeldes na Ucrânia (Alan Wilson)

Como mostra o curso da história, voar pelo espaço aéreo de países envolvidos em conflitos ou grandes tensões pode ser uma situação arriscada e o menor desvio de curso pode ser mortal.

Veja mais: O homem que reinventou o avião no Brasil

 

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